O Cerrado grita, o mundo precisa escutar
Incêndios na região não são fatalidades naturais, mas produtos de escolhas sacrificantes à vida para expansão do agro; em meio ao cenário de falsas “soluções verdes”, povos originários e tradicionais cerradeiros resistem para adiar o fim do mundo
Para ‘adiar o fim do mundo’ | Vozes da terra na COP30*
Enquanto a 30ª Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP30)[1] concentra os holofotes mundiais sobre as falsas “soluções verdes” à crise climática, o Cerrado – berço das águas do Brasil – segue queimando em silêncio. Essa terra-território[2], responsável por abastecer oito das principais bacias hidrográficas do país, enfrenta incêndios cada vez mais intensos e recorrentes.
Entre junho e setembro deste ano, a vegetação do Cerrado transformou-se em combustível pronto para o fogo. Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), somente no Parque da Chapada dos Veadeiros (GO), a estimativa é que 110 mil hectares foram tomados por incêndios que duraram 21 dias[3]. A combinação entre estiagem prolongada, vegetação altamente inflamável e ações humanas – como a limpeza de terrenos com fogo e o avanço do desmatamento – vem reproduzindo, ano após ano, um cenário explosivo.
Para a brigadista Kalunga, de Cavalcante (GO), Tainá Aquino, o clima mais seco e o aumento da temperatura do solo tornam o controle das chamas cada vez mais difícil. “Este ano o fogo foi mais intenso e muito difícil de controlar, por isso queimou uma grande área do Cerrado. Foi o incêndio que mais demorou a ser apagado”, relata.
Com os incêndios prolongados, o risco vai muito além da perda de biodiversidade. As chamas avançam sobre territórios de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), comprometem a segurança e a soberania alimentar e ameaçam modos de vida milenares. A fumaça também alcança cidades próximas, deteriorando a qualidade do ar, agravando doenças respiratórias e colocando todas as expressões de vida em perigo.
Cerrado em colapso
Essa terra-território, que ocupa cerca de 23,3% do país, é um dos ecossistemas mais antigos e mais ricos em biodiversidade do planeta e desempenha papel estratégico na regulação hídrica nacional. Conhecido como o “Berço das Águas do Brasil”, abriga as nascentes dos rios São Francisco, Tocantins, Araguaia e Paraná, entre outros. Nas últimas décadas, após perder mais de 50% da vegetação nativa, esse ecossistema vital tem dado sinais alarmantes de desequilíbrio. Tornou-se cada vez mais vulnerável à ação humana e a fatores ambientais que intensificam os incêndios florestais de grande escala.
Embora possua vegetação naturalmente adaptada ao fogo, os incêndios atuais ultrapassam em muito os ciclos ecológicos naturais. Depoimentos das comunidades e dados de conflitos no campo[4], documentados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino da Comissão Pastoral da Terra (Cedoc/CPT), apontam as atividades agropecuária e invasão de territórios como o principal vetor dos incêndios no Cerrado, ampliando a degradação ambiental e comprometendo o equilíbrio climático e hídrico da região.
De acordo com o Dossiê Agro é Fogo , o agravamento do problema está diretamente relacionado à expansão da fronteira agrícola, ao uso inadequado do fogo no manejo agropecuário e à fragilidade da governança ambiental. Entre os fatores que contribuem para essa realidade estão:
1 – O uso do fogo em práticas agropecuárias, especialmente para limpeza de pastagens e preparo do solo, muitas vezes sem controle técnico – como a escolha de períodos adequados ou a construção de aceiros. Combinadas às estiagens prolongadas e à baixa umidade do ar, essas práticas tornam a vegetação altamente inflamável e favorecem a propagação descontrolada das chamas;
2 – A abertura de grandes lavouras e pastagens, que fragmenta habitats naturais e isola remanescentes de vegetação nativa, reduzindo sua capacidade de regeneração e aumentando a vulnerabilidade ecológica do bioma;
3 – A grilagem de terras públicas e o desmatamento, processos marcados pela baixa proteção ambiental e territorial, sobretudo em áreas de povos e comunidades tradicionais, e pela sensação de impunidade – reflexo da falta de regularização fundiária, da fiscalização insuficiente, da frágil responsabilização por crimes ambientais e da ausência de políticas públicas consistentes de prevenção e combate ao fogo nas regiões mais críticas.
Esse cenário evidencia que o aumento dos incêndios florestais no Cerrado é efeito territorial da ocupação e produção baseado na exploração intensiva dos bens comuns naturais, vinculados às cadeias globais de produção e consumo. A continuidade desse modelo, sem mecanismos eficazes de regulação e conservação, ameaça não apenas a biodiversidade e os modos de vida tradicionais, como também o equilíbrio hídrico que sustenta boa parte do território brasileiro.
Os incêndios no Cerrado expõem as contradições de um modelo de desenvolvimento baseado na expansão de commodities agrícolas, que externaliza custos sociais e ecológicos. Essa ofensiva se reinventa a cada nova possibilidade de lucro. O agro-hidro-minero-negócio ceifa expressões dos povos do campo, das águas e das florestas e, também, das cidades.
As perversidades e a violência físico-simbólica desse modelo nos obrigam a retomar, por repetidas vezes, o discurso sobre a necessidade de responsabilização pelas violências e políticas públicas socioambientais. Principalmente, em um cenário em que as falsas “soluções verdes”, a Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+) e os bens comuns naturais são postos à mesa de discussões globais como capital e moeda de troca de alto nível.
Assistir a esse leilão de ideias tecno-liberais é colaborar com a amnésia social sobre o legado ancestral dos povos originários e tradicionais na conservação e luta para ‘adiar o fim do mundo’. É urgente mudar o olhar sobre o Cerrado – compreender que sua destruição não é um fenômeno natural e inevitável, mas o resultado de decisões econômicas e políticas que tratam essa região ecológica como fronteira agrícola a ser explorada, e não como patrimônio vital à sobrevivência do país.