COVID-19: estudo revela que SARS-CoV-2 manipula RNA da célula hospedeira para bloquear defesa imunológica
Uma equipe da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) identificou um mecanismo até então desconhecido utilizado pelo SARS-CoV-2 para neutralizar o sistema de defesa das células humanas. O vírus não só dribla o sistema imune externo — como fazem outros patógenos —, mas também atua dentro da célula, manipulando o RNA da célula infectada de uma forma inédita. A descoberta, publicada na revista NAR Molecular Medicine com apoio da FAPESP, abre caminho para novos estudos sobre tratamentos e vacinas.
Interferência direta no RNA da célula
O trabalho mostra que o SARS-CoV-2 estabelece uma interação sofisticada com o RNA das células pulmonares. Segundo o pesquisador Marcelo Briones, coordenador do estudo e professor da Escola Paulista de Medicina, o vírus utiliza um mecanismo singular de pareamento para alterar o funcionamento do maquinário celular.
“O SARS-CoV-2 manipula o material genético da célula de maneira extremamente precisa. Ele interfere diretamente no RNA e bloqueia a produção de interferon, uma das principais defesas antivirais”, afirma Briones. Segundo ele, os achados podem futuramente orientar o desenvolvimento de novas vacinas e medicamentos antivirais.
Um dos pontos centrais do estudo é o papel da metilação, uma modificação química que altera o RNA viral. Essa estratégia pode servir de base para futuras terapias que inibam as enzimas responsáveis por esse processo, reduzindo a capacidade do vírus de se proteger dentro da célula.
Como o vírus enfraquece a resposta imune
A equipe, formada pela pós-doutoranda Cristina Peter e pelo mestrando Caio Cyrino, observou que o vírus, ao entrar na célula, expõe seu RNA e passa a interagir rapidamente com lncRNAs (RNAs longos não codificadores), moléculas que regulam a sinalização do interferon.
Entre os lncRNAs mais afetados estão UCA1, GAS5 e NORAD, elementos-chave da resposta imune inata. Durante esse processo, o vírus induz a chamada metilação N⁶-metiladenosina (m⁶A), que modifica a estrutura do RNA e dificulta o pareamento clássico entre adenina (A) e uracila (U).
Essa mudança favorece pareamentos alternativos, como o tipo Hoogsteen, menos estáveis e capazes de alterar o tempo de interação dos lncRNAs com seus alvos — como microRNAs — prejudicando sua função reguladora. “O lncRNA UCA1 se mostrou especialmente relevante, com expressão reduzida e maior metilação, além de interações diretas com o genoma viral”, explica Briones.
Tecnologia de ponta e próximos passos
As análises foram realizadas com o Oxford Nanopore, tecnologia de sequenciamento que permite ler longas cadeias de RNA em tempo real, identificando modificações químicas com precisão. Técnicas de inteligência artificial ajudaram a medir o aumento global de metilação nas células infectadas.
Também participaram do estudo os pesquisadores Fernando Antoneli e Nilmar Moretti, ambos da Unifesp.
A próxima etapa da pesquisa será validar experimentalmente as interações observadas por meio das análises computacionais. “Agora começa o trabalho de bancada, para confirmar os mecanismos que identificamos”, conclui Briones.