Livro analisa a disputa pelo espaço público por diferentes segmentos religiosos no Brasil contemporâneo

Conflitos religiosos, ocorridos em diferentes esferas do país, tornaram-se expressivos nos anos recentes. Tensões, antes ocultas, mas nem por isso inexistentes, ganharam visibilidade. Esta se deve, em parte, ao fato de que o modelo de democracia inaugurado com a Constituição de 1988 imaginou uma nação plural. E uma nação plural pressupõe a produção de novas ferramentas jurídico-políticas que têm como objetivo abrir espaço para a diversidade. Assim, inauguraram-se dinâmicas de produção e competição das diferenças.

A disputa pelo espaço público e pelos instrumentos do Estado por parte de diferentes segmentos religiosos faz parte do quadro. O tema é desenvolvido no livro Religious Pluralism and Law in Contemporary Brazil, lançado na última sexta-feira (15/03), no auditório do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em São Paulo.

“As engenharias institucionais desenvolvidas nestas últimas duas décadas para incorporar na agenda estatal o reconhecimento e o respeito à diversidade alteraram profundamente o modo de definir as diferenças religiosas, raciais e de gênero e suas formas de regulação”, diz Paula Montero, professora titular sênior da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Cebrap e uma das editoras do livro.

Fruto de sete anos de pesquisas, enfeixadas pelo Projeto Temático “Religião, direito e secularismo: a reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo”, apoiado pela FAPESP e coordenado por Montero, o livro trata o campo jurídico como um lugar privilegiado para a observação das linhas de força que disputam as transformações ideológicas, políticas e sociais da sociedade brasileira desde os anos 2000, tendo como referência 13 estudos de caso analisados por diferentes estudiosos.

“Ao instituir o pluralismo como princípio constitucional, a Carta deu origem ao surgimento gradual de novas agendas políticas, focadas em questões de diversidade. Concomitantemente, permitiu o reconhecimento de novos sujeitos de direitos engajados na defesa dessas novas agendas, bem como a criação de novos quadros e dispositivos institucionais”, escreve Montero na introdução.

De fato, a Constituição de 1988, a mais abrangente e inclusiva que o Brasil já teve, mudou a fisionomia do Estado brasileiro. Desaguadouro de uma luta tenaz e prolongada contra o regime ditatorial e costurada por uma ampla e heterogênea coalizão de forças, a Carta facilitou e estimulou a participação da sociedade civil.

“Ela fez com que a sociedade civil se reinventasse e aprendesse a falar uma linguagem jurídica, para poder ter acesso ao Estado e participar de sua regulação. Isso fez com que aparecessem novos sujeitos políticos, novas linguagens e novas formas de atuar. A democracia inventada pela Constituição de 1988 não é igual à democracia anterior a 1964”, resume a pesquisadora à Agência FAPESP.

E acrescenta: “Em particular isso afetou o mundo das religiões, especialmente do catolicismo e do protestantismo. Foi como se a religião tivesse saído da igreja para se organizar, com novos atores e com novas linguagens, na esfera pública”.

Dessincretização

Montero argumenta que o grande paradigma que organizou a diversidade religiosa do país no passado foi o sincretismo. Essa era a ideologia predominante no âmbito religioso. Havia a ideia de que o Brasil tinha, sim, diferentes religiões, mas que o sincretismo organizava e pacificava essas diferenças, porque esse suposto sincretismo conferia uma referência católica a todas as outras religiões, encaixando-as em um sistema hierárquico. “A Constituição de 1988 inaugura um amplo processo de dessincretização. O sincretismo começou a ser combatido e as religiões passaram a querer aparecer na sua particularidade. Se reconstruíram as fronteiras religiosas, justamente porque disso dependem o acesso ao Estado e o acesso a direitos”, afirma a pesquisadora.

Um fator muito importante a ser considerado foi que a Constituição de 1988 incluiu uma nova referência de democracia, a democracia plural, que não estava presente nas constituições anteriores. A partir desse momento, questões que também não estavam presentes no debate público começaram a ser modeladas, apresentadas e referidas em termos de direitos. “Isso tudo foi sendo inventado, modelado, transformado. Foram progressivamente criados os direitos à diversidade. E, de certa forma, foi também redefinida a própria noção de diversidade: o que é ser mulher, o que é ser negro, o que é professar uma religião diferente do catolicismo e assim por diante. Como não poderia deixar de ser, essas redefinições fizeram emergir novos conflitos, cujas dinâmicas nos pareceu importante investigar. Cada capítulo do nosso livro trata de um aspecto desse quadro grande e complexo – todos eles referidos a uma gramática jurídica, não como linguagem técnica, mas como fala social, em um contexto em que, até para falar de religião, é preciso usar termos oriundos do repertório jurídico”, afirma Montero.

Um elemento a mais, enfatizado pela pesquisadora, foi que a nova Constituição constitucionalizou os direitos humanos. E, ao fazer isso, instituiu uma hierarquia no sistema legal, tornando a preservação da dignidade humana e dos direitos humanos a regra fundamental que as outras regras não podiam desrespeitar. E a ideia de direitos humanos foi assimilada pelos diferentes segmentos sociais para falar de direitos relativos à diversidade.

“Não é que a Constituição tenha feito da sociedade o seu espelho. Nem tudo caminhou na mesma direção, nem tudo caminhou na mesma velocidade, muitas coisas mudaram de sentido. Mas ela criou, sim, um marco de referência que mudou a percepção coletiva sobre a sociedade brasileira. Hoje, não é mais possível sustentar uma ideia de democracia que não tenha presentes o reconhecimento dos direitos das mulheres, dos negros, dos indígenas. Não é mais possível sustentar uma ideia de progresso que desconsidere a questão ambiental. Mas é claro que os termos da democracia não estão dados. Eles estão sempre em disputa e são o resultado da luta política e dos consensos a que é possível chegar momentaneamente”, pondera Montero.

O próprio conceito de liberdade religiosa, fundante de noção moderna de democracia, se mostra nesse novo contexto um conceito juridicamente limitado para proteger a diversidade religiosa e racial, e não dá conta do modo público de funcionamento das religiões no mundo contemporâneo. Assim, para proteger juridicamente a diversidade, será preciso repensar os próprios termos de sua proteção. “Há segmentos religiosos que se apoiam, por exemplo, no argumento da liberdade religiosa para contestar o direito ao aborto sob qualquer condição. Ou para negar aos afrodescendentes completa igualdade de participação na esfera pública. São contradições novas, sobre as quais é preciso pensar”, sublinha a pesquisadora.

A noção de arenas públicas utilizada na análise dos casos permitiu compor um panorama multidimensional das tensões que correlacionam atores e instituições. Essa abordagem também permitiu observar as religiões não como grupos autorreferenciados, mas como linguagens operadas por atores na esfera pública.

“Tenho tentado pensar as organizações religiosas, evangélicas, católicas ou não cristãs não como grupos homogêneos que pensam e se comportam na cena pública orientados por suas crenças. Tenho procurado observá-las em sua relação com a constituição dos problemas públicos e nos modos como os diferentes atores se mobilizam em relação a eles. Os diferentes capítulos que compõem este livro demonstram que, dependendo dos modos e de constituição do problema público, atores relacionados a uma mesma organização religiosa podem se posicionar em lados diferentes. A Igreja Católica, por exemplo, está na linha de frente em defesa dos territórios indígenas ou quilombolas, ao lado de setores acadêmicos e políticos; ao mesmo tempo, com relação ao aborto, enquanto alguns segmentos evangélicos são seus defensores, setores acadêmicos e teológicos associados ao Vaticano são os principais opositores à sua descriminalização”, exemplifica Montero.

A pesquisadora acrescenta que estudos desenvolvidos no livro mostram que, desde os anos 1970, o Vaticano constituiu um grupo de excelência, formado por biólogos, psicólogos, teólogos e outros acadêmicos, para pensar qual seria a versão católica de uma bioética moralmente aceitável. Assim, quando esse debate chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), os que falaram sobre o assunto foram, principalmente, cientistas católicos, e não pastores evangélicos ou padres. Conforme Montero, esse exemplo mostra que “as teorias segundo as quais as línguas da religião, da ciência e da política são faladas apenas em suas esferas próprias já não conseguem representar o modo como os atores religiosos se expressam nas arenas públicas”.

(fonte:agencia.fapesp.br)