Modelo econômico que levou à crise climática não será a solução para o problema, diz sociólogo

Qualquer resposta substantiva à crise climática deve passar pelo enfrentamento das enormes assimetrias entre os chamados Norte e o Sul globais e, no âmbito dos países do Sul, das lógicas neoliberais e neocoloniais: esse foi o fio condutor da palestra “Mudanças Climáticas, Transição Energética e Soberania Alimentar na África: Desafios e Alternativas”, proferida pelo sociólogo e pesquisador Miguel de Barros na 6ª Conferência FAPESP 2024.

Nascido na Guiné-Bissau em 1980 e atuante desde os 14 anos em movimentos sociais, Barros é cofundador do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral (Cesac) e dirigente da organização não governamental Tiniguena. Membro do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África (Codesria) e participante de diversas entidades, foi responsável pela elaboração de várias políticas públicas na Guiné-Bissau e em outros países da África, contemplando questões como sustentabilidade ambiental, segurança alimentar, inclusão de gênero etc. (leia mais em: agencia.fapesp.br/52307).

No bojo de uma larga exposição de dados quantitativos, Barros sublinhou o contraste entre a riqueza de recursos naturais e a dramática condição socioeconômica das populações da África. “No continente africano, 80% das terras agriculturáveis ainda estão por serem exploradas. E são zonas de acesso à água. Mas, devido a questões também ligadas às formas de produção de energia do Norte Global, estamos a ter efeitos muito práticos em relação à produtividade e ao acesso à terra. Em 2022, perdemos 11% do território agriculturável. Estima-se que, para 2050, vamos perder 18%. Isso implica, neste momento, em 200 milhões de africanos a passar fome. E que, em 2050, esse número poderá aumentar para 30% da população: 600 milhões de pessoas vão estar em uma situação de insegurança alimentar, de incapacidade de produção e de controle daquilo que são seus sistemas alimentares”, disse.

Uma das consequências, segundo o sociólogo, será o empobrecimento ainda maior das mulheres. “Porque na agricultura africana, 67% da mão de obra é feminina. Tanto na conservação dos espaços, na produção, na transformação dos produtos, na salvaguarda das sementes, na confecção dos alimentos, a mão de obra é essencialmente feminina. Porém, o mais importante é que essa mão de obra feminina é decisiva não apenas no mercado. É ela também que garante a transmissão secular dos saberes e das variedades mais endêmicas, que são chamadas de sementes crioulas. Ou seja, nós estamos a fazer uma tripla combinação, que é a redução da capacidade de produção, o empobrecimento e a fragilização daquilo que é o ativo humano em termos da produção”, afirmou.

Barros lembrou que 57% da população africana não tem acesso a energia, enquanto 69% de toda a energia consumida no mundo em 2022 ocorreu no Norte Global. “Um cidadão francês ou alemão consome nove vezes mais energia do que um cidadão africano. E, quando vamos ver onde se concentra esse consumo de energia, ele aparece associado a três setores: indústria bélica, conservação de alimentos e abastecimento energético para o lazer. Enquanto isso, em África, só quatro países têm 100% de cobertura de energia. Até ano passado eram três. Agora entrou mais um”, relatou.

De acordo com o sociólogo, os impactos atribuídos às mudanças no clima nem sempre decorrem de fatores puramente climáticos. “O que está em causa é a justiça social. Dos dez países que mais sofrem com poluição, sete são africanos. E dos 54 países africanos, só sete é que têm sistemas de monitoria de poluição. Por que a poluição é importante? Porque toda a tragédia da COVID matou no mundo 6,9 milhões de pessoas. Mas a poluição climática, sem falar dos resíduos, está a matar em África 9 milhões de pessoas por ano. Ninguém fala disso”, pontuou.

E, entrando no campo dos resíduos, prosseguiu: “A Mauritânia é o maior depósito dos resíduos da Microsoft. Tem portos em que, agora, já não se consegue pescar. No delta do rio Níger, por causa da poluição produzida pela França, as pessoas não têm acesso à água potável, nem à pesca, nem à agricultura. E agora navegam sobre oleodutos de petróleo. Podemos ainda alargar a base. Há uma multinacional coreana, a Daewoo, que comprou o equivalente a 150 campos de futebol em Madagascar para produção em monocultura de agrocombustível e privatizou completamente a capacidade de Madagascar de produzir alimentos e gerar estabilidade econômica. Isso levou àquilo que hoje todo mundo conhece: Madagascar como um país de instabilidade, de golpes de Estado”.

Estes e outros dados o encaminharam a uma crítica bastante enfática do modelo econômico neoliberal e neocolonial, ao qual atribui a perpetuação da desigualdade e da exploração dos recursos africanos. Ele argumentou que a crise climática é, na verdade, uma crise de justiça social e econômica, exacerbada por práticas econômicas e industriais insustentáveis, que beneficiam o Norte Global em detrimento do Sul. “No modelo neocolonial, no modelo neoliberal, a África está escolhida como reserva de matéria-prima, sem direito à transformação dessa matéria-prima, e que tem de ir buscar essa matéria-prima como produto acabado no Norte global. Esse modelo nos levou ao esgotamento do solo devido à sobre-exploração, à pobreza devido ao deslocamento das pessoas, ao regime de monocultura e não à diversificação produtiva. E o modelo também que cada vez mais está a interferir no nosso regime alimentar”, apontou.

Destacando a importância da ética diplomática no relacionamento entre os países e das soluções baseadas na natureza no contexto de cada país, Barros resumiu: “O que eu tenho de chamar a atenção é que nós estamos perante uma emergência climática, nós estamos perante uma emergência colonial. Essa emergência colonial leva-nos a uma situação de desapropriação da nossa capacidade endógena, mas também nos retira todos os mecanismos para, por exemplo, ter a possibilidade de combater os fenômenos climáticos. Não podemos pensar que o mesmo comportamento que levou a essa destruição é que vai ser a solução para o problema. Não são as tecnologias que são a solução para o problema climático. É o estilo de vida que é o elemento fundamental”.

A 6ª Conferência FAPESP 2024 teve a coordenação do professor Carlos Alfredo Joly, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e a moderação da professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Participaram da mesa de abertura o professor Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP, e o professor Fernando Ferreira Costa, coordenador da comissão multidisciplinar que organiza o ciclo de Conferências FAPESP 2024.

Zago lembrou que conheceu Barros no ano passado, em uma reunião ocorrida em Portugal, e ficou impressionado com ele, como “um representante da África moderna, um intelectual da África moderna, discutindo sobre problemas da África que nós desconhecemos”. Por isso, o convidou para trazer o tema para o ciclo Conferências FAPESP 2024.