Medo, dor, vergonha e desigualdade afastam mulheres do rastreamento do câncer de colo do útero e de mama

Estudos da Fundação Oncocentro de São Paulo, com apoio da FAPESP, revelam como barreiras emocionais, estruturais e sociais comprometem a prevenção

Mesmo com a oferta gratuita de exames preventivos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), muitas mulheres no Brasil ainda enfrentam obstáculos que vão além da disponibilidade dos serviços. Medo do diagnóstico, dor durante os procedimentos, vergonha, dificuldade para agendar consultas, demora nos resultados e fatores socioeconômicos — como cor da pele, escolaridade e ocupação — continuam afastando parte significativa da população feminina dos programas de rastreamento do câncer de colo do útero e de mama.

O câncer do colo do útero é o terceiro mais frequente entre mulheres brasileiras e a quarta causa de morte por câncer. Já o de mama é o tipo mais comum, desconsiderando o câncer de pele não melanoma.

Dois estudos financiados pela FAPESP (processos 22/09419-3 e 22/15539-1) e conduzidos pela Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp) evidenciam como essas barreiras estão profundamente enraizadas nas desigualdades sociais. As pesquisas foram realizadas em 50 unidades básicas de saúde de 37 municípios paulistas e mostram que, apesar dos avanços na cobertura, os programas de rastreamento ainda não alcançam de forma efetiva as mulheres mais vulneráveis.

Segundo Carolina Terra de Moraes Luizaga, pós-doutoranda da Fosp e da Faculdade de Saúde Pública da USP, o Brasil ainda opera majoritariamente no modelo de “rastreamento oportunista”. Isso significa que os exames são feitos quando a mulher procura espontaneamente o serviço de saúde ou recebe a recomendação durante outra consulta.
“O problema é que esse modelo privilegia quem já está inserida na rede e exclui justamente quem mais precisa”, afirma.

Medo e ansiedade afastam mulheres do Papanicolau

No estudo sobre o rastreamento do câncer de colo do útero, 384 mulheres de 25 a 64 anos foram entrevistadas. Embora 87% tenham realizado o Papanicolau nos últimos cinco anos, quase metade relatou obstáculos que comprometem a continuidade do exame.

O medo de receber um diagnóstico ruim foi citado por 41% das entrevistadas. Também se destacaram a longa espera para realizar o exame (30%), a demora na entrega do resultado (30%) e a vergonha (29%). Esses entraves são ainda mais frequentes entre mulheres com menor renda e escolaridade.

“Esse medo não afeta apenas o primeiro exame, mas principalmente a repetição periódica, que é fundamental. A demora no laudo aumenta a ansiedade e compromete a confiança no sistema”, aponta Luizaga.

Mamografia: dor é a principal barreira

No rastreamento do câncer de mama, foram ouvidas 170 mulheres de 50 a 69 anos. Entre elas, 84% fizeram a mamografia nos últimos cinco anos, mas a experiência da dor foi mencionada por 59% como principal motivo para evitar o exame. Também foram citadas a longa espera para realizar o procedimento (44%), a dificuldade de agendamento (40%) e o medo do diagnóstico (32%).

Para a pesquisadora Alice Barros Câmara, autora do estudo, o dado mais impressionante é o peso da dor.
“Experiências prévias negativas influenciam se a mulher volta ou não para repetir a mamografia. Não basta ampliar o acesso; é preciso melhorar a experiência da paciente”, destaca.

A logística também pesa: burocracia, falta de horários, unidades distantes e pouca disponibilidade de serviços formam um conjunto de barreiras que dificultam a adesão.

Os dados revelam desigualdades marcantes. Mulheres negras e pardas relataram mais constrangimento, dificuldades de agendamento e maiores tempos de espera. Entre as mulheres brancas, medo e dor apareceram com mais frequência. Baixa renda e escolaridade também se mostraram fatores associados a maiores obstáculos. Já entre mulheres empregadas, surgiram desafios como falta de tempo, esquecimento e conflitos com o horário de trabalho.

“Essas barreiras evidenciam que desigualdades raciais, sociais e econômicas continuam moldando o acesso à saúde. Mulheres em empregos informais ou sem flexibilidade encontram dificuldades muito maiores”, reforça Câmara.

Rastreamento organizado: um caminho possível

O Brasil ainda não adotou plenamente o modelo de rastreamento organizado, no qual todas as mulheres elegíveis são identificadas, convidadas e acompanhadas individualmente ao longo de todo o processo — do exame ao tratamento, quando necessário.

Essa é justamente a proposta do projeto Controle do Câncer no Estado de São Paulo (ConeCta-SP), que está testando em Mococa (SP) um sistema informatizado para mapear mulheres em idade de rastreamento e consolidar, em uma única plataforma, informações do SUS sobre exames realizados e resultados. A tecnologia deve apoiar profissionais da atenção primária no acompanhamento contínuo das usuárias.

Luizaga lembra que, embora os indicadores nacionais indiquem cobertura próxima à recomendação da Organização Mundial da Saúde, eles não refletem a realidade.
“Há grande desigualdade entre regiões. Em São Paulo, após anos de queda, a mortalidade voltou a subir, especialmente entre mulheres jovens de 25 a 39 anos. Cerca de 45% dos diagnósticos ainda ocorrem em estágios avançados”, afirma.

Muitas mulheres com exames alterados “se perdem” dentro do sistema e não chegam ao tratamento. Outras sequer são alcançadas pelas estratégias atuais de rastreamento.

Ações para reduzir desigualdades

Para as pesquisadoras, enfrentar o problema exige medidas integradas: reduzir filas, simplificar o agendamento, agilizar a entrega de resultados e ampliar a oferta de horários e locais de atendimento — incluindo unidades móveis que atinjam regiões periféricas e rurais. Também defendem ações para tornar a experiência da paciente menos dolorosa e mais acolhedora.

“A abordagem centrada na paciente é essencial. Não basta dizer que o exame é importante. É preciso ouvir as mulheres e adaptar as estratégias às suas realidades”, diz Luizaga.

Câmara destaca que políticas específicas para grupos mais vulneráveis são indispensáveis.
“Não podemos tratar todas as mulheres como se vivessem as mesmas condições. Raça, renda, escolaridade e trabalho influenciam diretamente a adesão. Se isso não for considerado, continuaremos reproduzindo desigualdades.”