Missão Apyterewa: em ação conjunta, STF, CNJ e Presidência da República confirmam sucesso da desintrusão de terra indígena no Pará
Em uma ação conjunta realizada no início de fevereiro, entre sexta-feira (2/2) e segunda-feira (5/2), representantes do Supremo Tribunal Federal (STF), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Presidência da República avaliaram presencialmente os esforços da Operação de Desintrusão da Terra Indígena Apyterewa, determinada no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 pelo presidente do Tribunal, ministro Luís Roberto Barroso.
Atuando em harmonia, os integrantes da comitiva oficial que foi ao município de São Félix do Xingu, no Estado do Pará, inspecionaram locais e conversaram com moradores, que se mostraram gratos pelo processo de desintrusão. “Quero agradecer ao presidente do STF por essa força, a luta dele foi um sucesso e demonstrou, firmemente, a confiança que a gente tem nele. Obrigado. A natureza também agradece.” A mensagem partiu da líder indígena Wenatoa Parakanã, vice-presidente da associação criada pelo povo tradicional de recente contato.
Os relatos mostram que o povo parakanã, que vive em 22 aldeias espalhadas na Terra Indígena (TI) Apyterewa, não escuta mais o barulho das serras. As árvores pararam de cair, e os caminhões com imensas toras de madeira nativa da floresta amazônica não circulam mais no território sagrado do povo tradicional da Amazônia. Os garimpos clandestinos não escavam mais o leito do Rio Xingu, nem contaminam os recursos hídricos com mercúrio e rejeitos de mineração. Todas as pessoas intrusas, inclusive o gado criado nas pastagens abertas com a derrubada da floresta, também foram retiradas da região.
Casas abandonadas, edificações e fazendas destruídas. Apesar de, em alguns locais, o cenário ser de terra devastada, a perspectiva de visão destas áreas livres de ações criminosas cometidas por grileiros, pecuaristas, madeireiros e garimpeiros ilegais, bem como dos demais invasores, é muito positivo para a preservação do bioma amazônico. A sensação compartilhada pelo povo parakanã é de alívio, diante da preservação da parte do território que ainda está intacta e com a retomada da área invadida.
A missão foi organizada pela Presidência do STF e também contou com servidora e juízas auxiliares do CNJ, além de assessores da Secretaria-Geral da Presidência da República, da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). No local, policiais judiciais da Secretaria de Segurança do Tribunal asseguraram os trabalhos da comitiva, com apoio de equipes da Polícia Federal (PF), da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), agentes da Justiça do Trabalho da 8ª Região e do Exército Brasileiro.
“A visita técnica solicitada pelo ministro Barroso no contexto da ADPF 709 teve objetivo de verificar o progresso no processo de desintrusão, avaliar a potencial efetividade das soluções propostas para sustentabilidade da desocupação após a saída das forças de segurança, bem como identificar possíveis pontos a serem trabalhados para a melhoria da saúde indígena”, explica o assessor especial da Presidência do STF Marcelo Varella.
Desintrusão
Esta é a terceira tentativa, e a única bem-sucedida, para retirada de intrusos na TI Apyterewa, homologada pelo governo federal em 2007. Desta vez, o plano de ação determinado pelo STF contou com a participação de 14 órgãos federais e estaduais. Para ilustrar a complexidade da situação, a área total do município de São Félix do Xingu (PA), 6º maior do Brasil, é de mais de 84 mil quilômetros quadrados. Apesar da grande extensão territorial, equivalente à soma dos territórios dos Estados do Rio de Janeiro (RJ) e Espírito Santo (ES), a população é de apenas 65 mil pessoas, com cerca de 2,5 mil indígenas. Essa desproporção populacional provocou, ao longo dos anos, um conflito social que motivou a expulsão de comunidades tradicionais para uma área de cerca de 30% da TI Apyterewa, cuja extensão territorial é de 7,7 mil km2.
De acordo com o Centro de Monitoramento Remoto da Funai, a região da TI Apyterewa foi a área de floresta amazônica mais desmatada entre os anos de 2019 e 2022. A malha viária precária e as vias de difícil acesso, que exigem muitas horas no deslocamento terrestre entre as localidades, são fatores que dificultam o monitoramento de crimes ambientais. Muitas vezes, o deslocamento por meio de aeronaves torna-se uma necessidade das autoridades públicas envolvidas na operação de desintrusão. As disputas territoriais remontam à década de 1980, quando os primeiros invasores da terra indígena se instalaram na região. Ao longo dos anos, a falta de fiscalização possibilitou que os invasores desmatassem cerca de 70% da TI Apyterewa.
O coordenador da operação de desintrução é o assessor da SG-PR Nilton Tubino. Ele avalia que o conjunto de esforços envolvidos viabilizou o sucesso da operação. “A fase de retirada de pessoas e do gado da região foi concluída em 22 de dezembro do ano passado. O que, agora, a Funai e a Força Nacional estão fazendo, com apoio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), é percorrer as áreas envolvidas para o processo de consolidação da desintrusão, com desfazimento de estruturas que ainda permaneçam no local. Mesmo com a saída dos invasores da TI ainda temos problemas de sabotagem, como destruição de pontes e obstrução de ramais, dificultando as ações de monitoramento por parte dos agentes envolvidos na operação’, pontuou Nilton Tubino.
Durante a missão, a comitiva oficial realizou o monitoramento de pontos críticos locais, com sobrevoo de helicóptero militar em áreas de garimpos, desmatamentos, pastagens, bases operacionais e propriedades nos arredores da TI, inclusive com vistoria na antiga Vila Renascer, para fins de verificação do cumprimento da desintrusão. A vila foi erguida pelos ocupantes ilegais da TI Apyterewa. No ápice da invasão, cerca de 200 habitações foram erguidas no local. Hoje, só sobraram as ruínas das edificações. Também houve um conjunto de diálogos para escutar as populações indígenas e os atores envolvidos nas ações de desintrusão.
Uma cena verificada na localidade comoveu boa parte dos integrantes da comitiva. Cerca de 150 animais de estimação, entre cães e gatos, foram abandonados pelos ocupantes ilegais. Apesar de muitos deles terem sido alocados em instalações específicas da antiga vila, e de não haver mais moradores no local, alguns animais ainda ocupam os escombros das moradias destruídas, como se ainda aguardassem o retorno dos tutores. Servidores do Ibama disseram que a situação é preocupante, pois muitos animais precisam de cuidados específicos e as condições do local são precárias. A maioria já foi castrada e, recentemente, foi criada uma campanha para viabilizar a adoção dos que foram deixados para trás.
ADPF 709
A ADPF 709 é uma ação movida no STF pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ao analisar o caso, o presidente do Tribunal determinou que a União elaborasse não só o plano para a retirada de invasores, mas, também, outro plano de ação para aperfeiçoar o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). Na decisão, o ministro Barroso intimou o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e o Ministério da Defesa (MD) para que, sob a coordenação da SG-PR, executassem o plano para expulsão de invasores da TI. Já o aperfeiçoamento do SasiSUS ficou sob responsabilidade do Ministério da Saúde (MS), e o monitoramento da execução do plano foi designado à Controladoria-Geral da União (CGU).
Na ocasião, o ministro Barroso relatou que o Supremo, ao julgar liminar na ADPF 709, determinou a adoção, pelo Estado brasileiro, de três medidas fundamentais para salvaguardar a população indígena: por meio da proteção deles em isolamento e de recente contato; da contenção e ao isolamento dos invasores de terras indígenas em geral; e da prestação de serviços de saúde aos povos indígenas. Conforme o ministro, para que a proteção às comunidades indígenas seja duradoura é necessária uma intervenção governamental com foco em medidas de médio e longo prazo, evitando que os invasores retornem às terras.
Em relação ao monitoramento da situação atual, o assessor especial da Presidência do STF Matheus Casimiro ressaltou que as imagens captadas na missão são essenciais para a ADPF 709. “Durante a desintrusão, muitas narrativas foram criadas sobre o que estaria ocorrendo nessa localidade, com apresentação de relatórios e petições para a paralisação das atividades. Mas uma coisa é o que está no processo, e outra coisa é o STF estar no local do problema e registrar a realidade. Os registros feitos na missão demonstram que a região está livre de invasores, possibilitando não só a percepção sobre outros aspectos relacionados à vida das pessoas que vivem ali, mas, também, sobre os impactos da desintrusão em cada uma delas”, pontuou.
Aldeia Apyterewa
No último sábado (3), a comitiva oficial fez uma visita à Aldeia Apyterewa. O grupo de trabalho foi recebido com festa pelo povo parakanã. Centenas de indígenas, entre adultos e crianças, se reuniram para celebrar a chegada dos convidados com uma calorosa recepção, incluindo cantos e danças típicas da etnia, além de presentes aos visitantes. Passado o momento da recepção, uma extensa pauta de assuntos de interesse da comunidade foi apresentada pelas lideranças indígenas. Além de apoio na segurança para monitoramento do território, evitando que os invasores voltem, eles disseram que há escassez de água potável, e pediram ajuda para questões referentes à saúde e saneamento básico nas aldeias da região. Outro ponto discutido foi a destinação do gado e bens apreendidos na desintrusão da TI.
“Agora, o pensamento do povo parakanã é reocupar o território para que as coisas melhorem. O plano é fundar mais sete aldeias na área, evitando que os invasores voltem”, disse o cacique da Aldeia Apyterewa, Tyé Parakanã. Ele afirma que o principal problema da comunidade era a presença dos invasores na TI, e que os indígenas estavam sem esperança em relação à saída dos invasores. “Com muita luta, a gente conseguiu! Tem muitos políticos envolvidos com a questão e, se não fosse o apoio do ministro Barroso e do governo federal, a gente não teria conseguido proteger a nossa terra. A desintrusão nos deixou livres. A gente está agradecendo o trabalho que foi feito, mas ainda temos muitos problemas graves por aqui”, afirma o cacique Tyé.
Quem participou dos debates na aldeia foi juíza auxiliar do CNJ Fabiane Pieruccini. Após a reunião, a magistrada reforçou a importância do legado da operação, e disse como essa experiência pode contribuir com a pacificação de outros conflitos no país. “Eu atuo com a questão territorial e, dentro dela, com as construções coletivas de soluções para áreas de conflitos fundiários. Eu acho que essa iniciativa do Supremo é inédita, e que o foco não está só na solução formal, mas, também, material da questão. O papel do Poder Judiciário não é só resolver processo, mas viabilizar a sua sustentabilidade. Nesse caso específico, são várias instituições atuando e todas imbuídas do mesmo escopo para dar efetividade a uma decisão judicial. De fato, é uma atuação moderna, e que tende a resolver o conflito. O processo foi resolvido e, agora, a gente precisa aplicar os meios necessários para que a decisão seja efetivamente cumprida.”
Ainda segundo a juíza auxiliar do CNJ, a participação da comunidade na construção das decisões é fundamental para que elas tenham sustentabilidade e se mantenham ao longo do tempo. “Não é uma decisão imposta, não são medidas executadas pelos órgãos envolvidos, sem ouvir o principal interessado que, no caso, são as comunidades indígenas. Existe a preocupação com quem está saindo da área, e essa preocupação é válida. Mas o mais importante é quem fica. É para a população indígena que está na TI que esta decisão se destina, e que devem ter os direitos garantidos. Posso dizer que foi muito emocionante esse processo de oitiva da comunidade, incentivando a participação e valorizando a cultura do povo que lá está”, conclui Fabiane Pieruccini.