Brasileiro sofre de síndrome da impunidade, diz advogado

Especialista analisa que nota baixa do Brasil no Atlas da Impunidade tem raízes históricas e culturais

A primeira edição do Atlas da Impunidade, produzido pela consultoria Eurasia e divulgado em 2023, mostra que o Brasil está em 70º lugar num ranking entre 163 nações. O estudo leva em conta 67 indicadores de 29 fontes diferentes para produzir a nota de cada país – em uma escala de 0 a 5. Quanto maior a pontuação, pior, ou seja, quanto mais perto do primeiro lugar mais impunidade tem no país. Com 2,56 pontos, o Brasil está logo abaixo de Tailândia, Cazaquistão e do Kuwait. Mesmo quando se considera apenas a América do Sul, o desempenho brasileiro é decepcionante. Uruguai (136º lugar), Argentina (120º), Chile (124º), Equador (106º), Peru (96º), Paraguai (93º) e Bolívia (75º) estão melhor do que o Brasil nesse quesito.

Os dados acima estão em consonância com pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz e divulgada em dezembro, mostrando que a impunidade no Brasil é mais incidente em crimes contra a vida. Dos 30.883 mil homicídios dolosos (quando há a intenção de matar) ocorridos no Brasil em 2021, apenas 35% foram esclarecidos. Em 2020, a situação foi parecida: dos 29.051 casos, somente 33% foram solucionados pela Justiça.

Para o advogado criminalista Gabriel Fonseca, que integra o escritório Celso Cândido de Souza (CCS) Advogados, essa síndrome da impunidade é cultural e histórica, é o sentimento que muitos têm de se enxergarem detentores de poder, principalmente quem tem maior condição financeira ou uma posição social considerada importante. “Este perfil acredita que, se algum tipo de infração for cometida, terão maior condição financeira de contratar advogados e seus conhecidos de alto escalão poderão, de alguma forma, deixar a situação mais branda”.

Juntando-se a isto, o País enfrenta atrasos no julgamento de processos e na aplicação das penas, e, assim, prescrevem crimes, ou seja, seus autores não podem mais ser julgados e punidos. A legislação brasileira também prevê uma série de benefícios, como a progressão de regime, a prisão domiciliar e a liberdade condicional, instrumentos que acabam sendo desvirtuados e beneficiando quem não deveria.

O especialista analisa que essa distinção de tratamento acontece em várias esferas do poder público. “Quando analisamos o percentual de pessoas pobres e negras que se encontram presas (68,2% dado de 2022), percebemos que há, ainda, uma questão cultural que é intrinsecamente imposta em nossa sociedade. É perceptível a própria forma de abordagem feita pela polícia em grande parte dos casos. O tratamento que é dado para abordagens e operações em favelas, por exemplo, é completamente diferente da forma que é tratada uma pessoa abordada em um condomínio de alto padrão financeiro”, salienta.

Exemplos recentes
Um caso de repercussão nacional que exemplifica este comportamento foi o do motorista de um Porsche amarelo que perseguiu, atropelou e matou um motociclista em São Paulo. De acordo com o delegado responsável pela investigação, o condutor teve um momento de fúria, razão pela qual perseguiu o motoqueiro após ter sentido que o seu veículo teve o retrovisor machucado por aquele motociclista Na semana passada, a Justiça aceitou denúncia do Ministério Público (MP) e o tornou réu por homicídio.

Contudo, Gabriel Fonseca ressalta a soberba do indiciado. “Esse caso da Porshe foi emblemático. O infrator se achou no direito de tirar a vida de outra pessoa por seu bem material ter sido danificado. O que ficou marcado, também, foi a forma com que o motorista agiu em audiência de custódia: com uma postura autoritária, acreditava que, mesmo após todo o ocorrido, ainda estava agindo dentro de seus direitos”.

Já em Goiânia, a Justiça decidiu no final de julho que o médico acusado de atropelar e matar dois jovens no viaduto da T-63 em abril de 2023, não vai a júri popular. De acordo com o Ministério Público, em local impróprio, o acusado resolveu testar se seu automóvel era capaz de alcançar 100 km/h em quatro segundos e passou a imprimir alta velocidade ao veículo, chegando a atingir 148 km/h e atingiu as vítimas fatais. A legislação determina que este tipo de crime deve ir a júri popular, mas a Justiça afirmou que o dolo eventual “não pode ser presumido” e deve ser comprovado nos autos.

“Esse caso é um exemplo claro de como a Justiça em nosso país trata casos semelhantes de maneira completamente arbitrária. Isso não apenas reflete no tratamento diferencial que temos em nossa sociedade, mas causa também uma grande insegurança jurídica a todos que precisam passar por uma ação judicial”, pontua o advogado criminalista.