Pesquisadora faz uma reflexão sobre o trauma e o sofrimento histórico das comunidades judaicas

A utilização política do trauma para justificar novas formas de violência foi o fio condutor da 8ª Conferência FAPESP 2024, “Repensando a Pós-Memória depois de 7 de Outubro”, proferida por Marianne Hirsch, professora emérita da Columbia University, em Nova York, e integrante da American Academy of Arts and Sciences. Apresentada em um momento de gravíssima escalada do conflito no Oriente Médio, a fala de Hirsch trouxe para o debate a ideia da instrumentalização ideológica da memória do Holocausto.

Nascida na Romênia e filha de sobreviventes da Shoah (palavra hebraica que significa “catástrofe” e se refere mais especificamente ao genocídio dos judeus pelos nazistas e fascistas, que vitimou mais de 6 milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial [1939-1945]), Hirsch é, atualmente, uma das principais referências nos estudos da memória. Sua extensa produção literária inclui o livro The Generation of Postmemory: Writing and Visual Culture After the Holocaust (2012).

Ela iniciou sua apresentação contextualizando o tema no quadro do agravamento do confronto israelense-palestino, a partir de 7 de outubro de 2023. “Como filha de sobreviventes do Holocausto, me abala profundamente ver como o Holocausto e a perseguição e o sofrimento da minha própria família são usados como um álibi para a violência contra a população de Gaza, agora com mais de 40 mil mortos, entre eles, milhares de civis e crianças”, disse.

Hirsch destacou que a instrumentalização do trauma e do sofrimento histórico das comunidades judaicas não é um fenômeno novo. “Proeminentes sobreviventes e intelectuais judeus, como Jean Améry, Zygmunt Bauman e Hannah Arendt, condenaram o uso da memória do Holocausto para os propósitos políticos de Israel tão cedo quanto nos anos 1950”, afirmou. E acrescentou que os políticos israelenses e a mídia frequentemente comparam o Hamas aos nazistas, desumanizando os palestinos ao chamá-los de “animais humanos” – uma expressão que, segundo ela, lembra as formas nazistas de desumanização dos judeus.

Acrescentando mais elementos para a reflexão, Hirsch ponderou sobre o papel que a pedagogia do trauma teve em reforçar um modelo de vitimização que pode se perpetuar ao longo das gerações. E sugeriu que a ênfase excessiva no sofrimento obscureceu outras formas de lembrar e transmitir a história. “Pode ser – eu quero perguntar – que essa cultura da lembrança, que o campo de estudos do Holocausto possibilitou, tenha sido parcialmente responsável pelo que estamos vendo desde o último outubro: a hiperbólica difusão do medo do antissemitismo e, assim, de um Holocausto retornado?”, questionou.

Hirsch informou que os estudos de memória passaram por mudanças significativas nas últimas décadas, especialmente no reconhecimento das múltiplas feridas traumáticas deixadas por diferentes histórias em todo o mundo, como a escravidão, o racismo, o colonialismo e o genocídio. Ela destacou que, embora o estudo do Holocausto continue presente, o campo agora busca metodologias que relacionem diferentes catástrofes históricas, dando a cada uma a sua especificidade. “No campo de estudos da memória, a centralidade do Holocausto deu lugar para metodologias multidirecionais, comparativas e conectivas”, falou. E destacou que essas perspectivas mais amplas e metodologias comparativas possibilitam ultrapassar o espaço da repetição traumática e do retorno, e abrem portas para relatos de cura individual e coletiva, resistência ativista e possibilidades de reparação cultural.

A pesquisadora revisitou o conceito de “pós-memória”, que cunhou para descrever a relação da segunda geração com eventos traumáticos vividos por seus pais, mas não experimentados diretamente por ela. “Estou pensando também nas formas poderosas com que o trauma pode ser transmitido por várias gerações e como isso tem permitido que muitos acreditem que, para herdar o legado do Holocausto, a segunda, a terceira e as seguintes gerações têm que sofrer um trauma transgeracional”, comentou.

Conforme explicou Hirsch, esse tipo de “contágio transgeracional” tenderia a “perpetuar uma cultura de defesa, desigualdade racializada, nacionalismo e etnocentrismo, que pode levar apenas a mais violência”. Ela argumentou que o trauma da Shoah, ao ser constantemente evocado como justificativa para as ações do Estado de Israel, corre o risco de distorcer o verdadeiro legado dos sobreviventes do Holocausto. “A memória do Holocausto pode ser útil neste momento, mas isso só será verdade se nos recusarmos a permitir que nossas histórias sejam usadas como um álibi para a guerra e a destruição”, afirmou.

Ela também enfatizou que o Holocausto não pode ser tratado como um caso isolado ou superior a outras atrocidades históricas, como a Nakba [palavra árabe que significa “catástrofe” e se refere mais especificamente à expulsão dos palestinos pelos judeus em 1948, quando cerca de 750 mil pessoas foram deslocadas de suas terras e mais de 500 aldeias foram despovoadas e destruídas]. E se referiu às reflexões feitas pelo intelectual palestino Edward Said sobre a instrumentalização da memória em contextos políticos e sobre como o medo do passado pode moldar as percepções no presente. “Pensar nas conexões entre as lembranças e pós-lembranças do Holocausto e da Nakba é essencial para o que Said chamou de bases para a coexistência”, disse Hirsch.

Segundo a acadêmica, o Holocausto não deve ser visto exclusivamente como um símbolo de sofrimento. “Se apenas nos lembrarmos do Holocausto por meio do trauma extremo, então, quando o Estado de Israel é apresentado como um lugar de redenção para o sofrimento judaico, esse próprio sofrimento se torna um álibi que autoriza a violência e a destruição”, advertiu. Para Hirsch, é essencial que a memória do Holocausto seja usada para promover justiça e solidariedade, especialmente para com os palestinos, cujas vidas têm sido destruídas. “Nós, judeus, que vivemos com o legado da Shoah, temos a responsabilidade de usar esse legado em prol da justiça e solidariedade”, concluiu.

Participaram da mesa de abertura da conferência os professores Fernando Menezes de Almeida, diretor administrativo da FAPESP, e Fernando Ferreira Costa, coordenador da comissão organizadora das Conferências FAPESP e das Escolas FAPESP de Ciência Interdisciplinar. O evento foi coordenado por Esther Império Hamburger, professora titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e vice-diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC), ambos da Universidade de São Paulo (USP), além de integrante da comissão organizadora, e teve a moderação de Márcio Seligmann-Silva, professor titular do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp).

Na apresentação da conferencista, Hamburger afirmou: “Eu me identifico muito com o trabalho da Marianne, também por razões familiares. Meu pai [o físico Ernst Hamburger] nasceu em 1933 em Berlim, numa família judia, veio para o Brasil aos 3 anos, cresceu aqui, tinha muito orgulho do Brasil, considerava-se brasileiro, e casou-se com a minha mãe [a física Amélia Império], que era de origem católica. Eu sou filha de uma mistura e do ideal da convivência e da tolerância”.

Também descendente de sobreviventes do Holocausto, Seligman-Silva ponderou que, durante muito tempo, a Shoah foi pensada como se estivesse situada no interior de uma cripta. “De certa maneira, a Shoah foi recordada de uma maneira bastante encriptada, dentro desse casulo, descolada da história, da história da longue durée [longa duração], para falar como Fernand Braudel, de uma história mais universal, apesar de que, desde o início, pensadores como Simone Weil, Hannah Arendt e, depois da Segunda Guerra Mundial, também Aimé Césaire, Frantz Fanon e muitos outros, sempre procuraram pensar a Shoah nesse contexto da longue durée, nesse contexto mais internacional, não de uma memória enquistada e extremamente pessoal e familiar, que levou a esse modelo também de se pensar uma história que poderia justificar ações violentas, ações genocidas, como as que estão sendo levadas a cabo hoje em dia”, disse.

E continuou: “O que eu vejo na fala da Marianne é a ideia de colocar os estudos da memória e do Holocausto para além do trauma. Não que o trauma vá ser abandonado, mas agora acho que estamos no momento de pensar para além dessa traumatização em série. Nós não somos sobreviventes de segunda geração. Nós somos de novas gerações que descendem de pessoas que sobreviveram. Essa questão de remodelar o conceito de pós-memória, que ela tinha proposto já há algum tempo, implica pensar que nós vamos viver agora para além dessa repetição traumática. Hannah Arendt insistia na relação entre o Holocausto e o imperialismo, o Holocausto e a violência colonial. Ela dizia que os generais nazistas, de certa maneira, foram treinados na África colonial. Então, estabelecer esses vínculos, estabelecer essas relações, é fundamental para retirar o Holocausto desse local de singularidade absoluta, que, inclusive, leva a questões bastante graves”.

A palestra de Marianne Hirsch na 8ª Conferência FAPESP de 2024 ofereceu uma reflexão necessária sobre como a memória histórica pode ser utilizada de maneiras construtivas ou destrutivas. Por meio da análise crítica do trauma transgeracional, ela destacou a necessidade de novas abordagens que favoreçam a cura em vez da perpetuação de ciclos de violência. E fez um chamado urgente para que a memória do passado seja utilizada para construir um futuro de paz e compreensão mútua.