PL da Dosimetria: pacificação ou recuo institucional diante de ataques à democracia?
A aprovação do Projeto de Lei 2162/2023, conhecido como PL da Dosimetria, pelo Senado Federal, reacende um debate sensível no Brasil: até que ponto o Estado deve flexibilizar punições para crimes que atentaram contra o próprio regime democrático?
A proposta, aprovada por 48 votos a 25 e agora encaminhada para sanção presidencial, altera a forma de cálculo das penas para crimes de tentativa de golpe de Estado e atentado ao Estado Democrático de Direito quando praticados no mesmo contexto. Na prática, deixa de somar penas e passa a aplicar apenas a mais grave — o que resulta em redução significativa das condenações impostas aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023.
A narrativa da “pacificação” e seus riscos
O relator da matéria, senador Esperidião Amin (PP-SC), defendeu a mudança como um instrumento de “pacificação nacional”. Segundo ele, manter centenas de condenados em regime fechado poderia aprofundar divisões políticas e comprometer a legitimidade institucional.
O argumento, no entanto, levanta questionamentos profundos. Crimes contra o Estado Democrático de Direito não são delitos comuns. Eles atingem o núcleo da Constituição, a estabilidade institucional e o pacto social que sustenta o regime republicano. Ao suavizar as penas, o Estado corre o risco de transmitir uma mensagem de tolerância a tentativas futuras de ruptura democrática.
Incoerência legislativa e seletividade penal
Críticos do projeto apontam uma contradição evidente no Congresso Nacional. Poucos dias antes, o Senado havia aprovado legislação para endurecer penas contra organizações criminosas, dificultando progressão de regime. Já no caso dos crimes políticos ligados ao 8 de janeiro, o movimento foi inverso: flexibilização e redução.
Essa assimetria reforça a percepção de seletividade penal, especialmente quando a própria justificativa do projeto admite que figuras centrais do episódio — incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro — podem ser diretamente beneficiadas.
Como destacou o senador Humberto Costa (PT-PE), trata-se de uma norma “casuística”, desenhada para favorecer um grupo político específico que atentou contra a Constituição.
“Manifestantes” ou tentativa organizada de golpe?
Defensores do PL argumentam que muitos condenados não integravam o núcleo articulador da tentativa de golpe, citando casos de pessoas comuns que receberam penas elevadas. Esse discurso, embora emocionalmente eficaz, ignora um ponto central: os julgamentos consideraram provas materiais, registros audiovisuais e condutas individuais — muitas delas documentadas pelos próprios réus.
Além disso, minimizar os atos como meros excessos de manifestação esvazia o reconhecimento de que houve planejamento, financiamento e coordenação, como lembrado pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI).
O precedente institucional
Talvez o aspecto mais preocupante do PL da Dosimetria não seja apenas o impacto imediato sobre os condenados, mas o precedente que estabelece. Ao revisar penas após julgamentos concluídos, o Legislativo interfere indiretamente na resposta institucional a crimes que buscaram romper a ordem constitucional.
Em democracias consolidadas, ataques ao regime democrático costumam ser tratados com rigor exemplar — não por vingança, mas por proteção institucional. A redução das penas pode enfraquecer esse princípio e alimentar a ideia de que golpes fracassados geram custos políticos baixos.
A decisão final e a responsabilidade histórica
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que só decidirá sobre a sanção após análise do texto final. Independentemente da escolha, a discussão já deixou marcas profundas no debate público.
O Brasil se vê diante de uma encruzilhada: optar por uma conciliação que pode soar como esquecimento institucional ou reafirmar que ataques à democracia exigem resposta firme, proporcional e pedagógica.
Mais do que “virar a página”, o país precisa decidir qual história quer escrever sobre a defesa do Estado Democrático de Direito — e quais sinais deseja enviar às futuras gerações.